Desempenho de edificações na Justiça: entenda a NBR 15.575/2013 do ponto de vista legal

Advogado explica a Norma de Desempenho de Edificações do ponto de vista jurídico: o peso legal, o uso nos tribunais e as responsabilidades de incorporadoras e moradores.

Depois de mais de uma década de discussões envolvendo diferentes elos da cadeia da construção civil, a Norma de Desempenho de Edificações (ABNT NBR 15.575) passa a ser obrigatória a partir de julho deste ano. O texto, que estabelece requisitos mínimos de desempenho para os imóveis habitacionais, é entendido por muitos como um divisor de águas e como um marco regulatório, técnico e jurídico.

A NBR 15.575 traz uma série de conceitos inéditos na normatização brasileira, como o comportamento em uso dos componentes e sistemas das edificações e a vida útil dos sistemas construtivos. Ao atribuir responsabilidades a incorporadores, construtores, projetistas, fornecedores e usuários, a norma também suscita uma série de dúvidas, não apenas sobre aspectos técnicos, como também jurídicos. É justamente sobre estes últimos que o advogado Carlos Pinto Del Mar vem se debruçando nos últimos anos. Consultor da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) e conselheiro jurídico do Sindicato da Habitação do Estado de São Paulo (Secovi-SP), Del Mar participou da comissão de estudos da Norma de Desempenho e também da elaboração do Apêndice Jurídico do Guia Orientativo sobre a Norma de Desempenho, recém-lançado pela CBIC.

“O conceito de vida útil será utilizado em disputas judiciais, sem dúvida. A propósito, já existem acórdãos do Superior Tribunal de Justiça que o adotam como base para decisões”

Bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), especializado em finanças, direito de empresa e arbitragem, Del Mar é também autor do livro “Falhas, Responsabilidades e Garantias na Construção Civil”, lançado em 2008 pela Editora PINI. Em entrevista à Construção Mercado, o advogado paulista esclarece que, para o direito, o atendimento às normas técnicas é uma presunção de regularidade. Ele revela também por que o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que balizaria os procedimentos no mercado nos casos de atraso para a entrega de obras, fracassou e, ainda, os principais fatores geradores de insegurança jurídica nos negócios imobiliários atuais.

Confira a entrevista:

Uma questão que vale sempre esclarecer é a obrigatoriedade de atendimento às normas técnicas da ABNT. Afinal de contas, elas têm peso de lei? Por quê?

As normas técnicas têm natureza diferente das normas jurídicas, e adquiriram força obrigatória devido a leis que assim as determinam. É o caso, por exemplo, do Código de Defesa do Consumidor, que considera abusivo colocar no mercado produtos em desacordo com as normas técnicas oficiais ou da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Também é o caso da Lei de Acessibilidade, que remete ao cumprimento de determinados itens das normas técnicas da ABNT, e assim por diante. Vale lembrar que, além de serem obrigatórias por força das leis que assim determinam, as normas técnicas devem ser cumpridas pelos profissionais da área técnica (engenheiros, projetistas etc.) também por dever ético-profissional. Para o direito, o atendimento às normas técnicas é uma presunção. Se as normas tiverem sido obedecidas, há presunção de regularidade. Se as normas não tiverem sido obedecidas, há presunção de irregularidade.

Como o senhor avalia a última versão do texto que entrou em vigor da Norma de Desempenho, a NBR 15.575/2013?

O texto revisado da Norma de Desempenho, publicado em 19 de fevereiro deste ano, aperfeiçoou o texto anterior, sem dúvida alguma. Houve mudanças importantes em referenciais técnicos, e penso que assim deverá continuar acontecendo, de agora em diante, com ajustes, melhorias e complementações contínuas. Em especial com relação aos reflexos jurídicos, houve melhoria na definição de conceitos, dentre os quais o de vida útil, por exemplo, que está mais elucidativo do que na versão anterior.

A Norma de Desempenho pode ser usada em um processo, por exemplo, contra uma incorporadora? Quem irá analisar tecnicamente se a norma foi ou não cumprida?

A ABNT NBR 15.575 estabelece requisitos mínimos de desempenho que devem ser atendidos pela edificação quando em uso, os quais servirão de parâmetros para aferir a qualidade da construção e nortearão tanto as reclamações como as verificações que forem feitas. Isso tudo com uma base técnica. Os requisitos técnicos estabelecidos pela Norma de Desempenho poderão sim ser exigidos das construtoras e incorporadoras, mas somente em relação às obras futuras, cujos projetos de construção venham a ser protocolados para aprovação depois da entrada em vigor da norma, ou seja, depois de 19 de julho de 2013, e servirão de base para as perícias que forem feitas, inclusive judiciais. A propósito, a norma estabelece com clareza a responsabilidade dos usuários pela manutenção, que é um pressuposto para que a vida útil seja atingida, cuja realização também deverá ser apurada em qualquer perícia.

“Deverá ocorrer também uma melhora nas decisões judiciais a respeito do assunto. Isso porque as perícias técnicas terão métodos de ensaio indicados na norma para avaliar tecnicamente a situação”

O senhor crê em um aumento do número de ações contra incorporadoras e construtoras por conta da Norma de Desempenho?

É possível, pois os parâmetros técnicos estabelecidos na norma permitirão aferir mais claramente a qualidade da construção e os interessados terão referenciais objetivos para as reclamações. Por outro lado, deverá ocorrer também uma melhora nas decisões judiciais a respeito do assunto. Isso porque as perícias técnicas terão métodos de ensaio indicados na norma para avaliar tecnicamente a situação. Além disso, as perícias e decisões judiciais contarão com referenciais de tempo estimados pelos próprios engenheiros – os prazos de vida útil e de garantia previstos na norma – que não estavam estabelecidos anteriormente. Tudo isso contribui para que as decisões judiciais sejam apoiadas em laudos melhores, e que os verdadeiros responsáveis respondam pelo problema, sejam eles os construtores, por eventuais vícios da construção, sejam eles os usuários, por mau uso ou falta de manutenção.

A que tipo de penalidade o construtor está sujeito ao não atender à norma de desempenho?

O construtor que descumpre a norma estará sujeito a reclamações na esfera civil que vão desde o não recebimento da obra, por quem a encomendou, até o abatimento do preço ou custo, por desvalorização ou ajustes que devem ser feitos na construção para enquadrá-la aos padrões técnicos. Pode haver também riscos na esfera criminal se houver violação a preceitos de segurança estabelecidos na norma e se dela resultarem vítimas.

“Uma norma técnica não tem força jurídica para impor coercitivamente prazos de garantia. No caso [da Norma de Desempenho], não se trata de imposição, mas de prazos que estão recomendados devido às características técnicas dos produtos”

Quem define os processos de manutenção obrigatórios são os construtores? Não há o risco de ocorrerem abusos, por exemplo, com exigências difíceis de serem atendidas visando a repassar a responsabilidade do construtor para os usuários?

O risco de abuso sempre existe, mas o mercado da construção civil está maduro, e prova disso é a própria norma, que nada mais é do que uma autorregulamentação, em que o próprio setor estabeleceu, tecnicamente, os requisitos mínimos para as edificações habitacionais. Cabe aos usuários realizar a manutenção, e não se trata de repassar responsabilidades, uma vez que é deles mesmos essa obrigação. Isso não é novidade, pois em outros produtos, como automóveis, por exemplo, incumbe aos usuários realizar a manutenção indicada.

Caso seja necessário fazer ensaios para checar o cumprimento da norma, quem paga por isso? É o proprietário ou a construtora? Quem tem o ônus da prova?

Relativamente aos ensaios, o custo deve ser arcado pelo interessado. Se a construtora desejar comprovar a qualidade de seu produto, deve arcar com os custos. Caso se trate de demanda judicial, o juiz decidirá a quem cabe o ônus da prova e a cobertura dos custos.

A Norma de Desempenho cita prazos de garantia diferentes para cada sistema (estrutura, vedação e pisos, por exemplo). O cumprimento desses prazos é obrigatório?

Uma norma técnica não tem força jurídica para impor coercitivamente prazos de garantia. No caso, não se trata de imposição, mas de prazos que estão recomendados na Norma devido às características técnicas dos produtos, associadas a um critério de tempo que a comissão de estudos adotou. Acho que os prazos de garantia recomendados pela norma serão adotados pelas empresas construtoras e incorporadoras. Até porque são estabelecidos pelo meio técnico, em benefício dos consumidores, e devem ser acolhidos pelos operadores do direito (advogados, juízes e promotores), de modo que, embora não sejam prazos obrigatórios, quem não os praticar, estará sujeito a questionamento.

A Norma de Desempenho pode gerar algum tipo de confusão entre o que é vida útil e garantia? A vida útil pode ser usada judicialmente?

A vida útil é um novo e importante conceito que está sendo introduzido pela engenharia, e que terá reflexo nas responsabilidades dos agentes da construção de modo geral (projetistas, construtoras, incorporadoras). Como se trata de novo conceito, é normal que surjam dúvidas no início. O conceito de vida útil será utilizado em disputas judiciais, sem dúvida. A propósito, já existem acórdãos do Superior Tribunal de Justiça que o adotam como base para decisões. Quanto aos prazos de garantia recomendados pela norma, existem alguns que são superiores a prazos de reclamação estabelecidos no Código Civil. A questão é que o Código Civil é genérico, enquanto que aqui se trata de uma norma específica para as edificações, elaborada com base em novos conceitos técnicos, por profissionais e entidades ligadas ao setor de construção, ou seja, ninguém melhor do que o meio técnico para referenciar os prazos de garantia, como aconteceu por meio da norma.

O senhor poderia explicar a diferença entre garantia legal e contratual?

A lei não estabelece – e nem teria condições de estabelecer – prazos de garantia para todos os produtos que existem. A garantia que a lei estabelece é no tocante aos prazos para reclamação. A única exceção é a construção civil, para a qual o artigo 618 do Código Civil estabelece o prazo de garantia de cinco anos, mas isso não se aplica a todos os itens e componentes da edificação, apenas à solidez, segurança e condições de habitabilidade. Ocorre que os fabricantes, de modo geral, concedem eles próprios prazos de garantia para os seus produtos espontaneamente (em geral, por questões de concorrência), que são denominados prazos de garantia contratual, porque não derivam da lei, mas do contrato de fornecimento.

O senhor acredita que a Norma de Desempenho possa se tornar uma grande causadora de processos no caso de inconformidades em obras do Minha Casa, Minha Vida, por exemplo?

É possível. Primeiro porque a Norma de Desempenho aplica-se às edificações habitacionais de modo geral, e como não estão excetuadas aquelas construídas pelo programa Minha Casa, Minha Vida, podem ocorrer questionamentos, sim. Em segundo lugar porque, em se tratando de construções econômicas, com limitações de orçamento, a qualidade das obras fica próxima do limite mínimo estabelecido na norma, que, não sendo atingido, pode dar margem a reclamações. Sempre lembrando que a norma não se aplica a obras existentes ou em andamento na data da sua entrada em vigor, que é 19 de julho de 2013, e que os requisitos técnicos por ela estabelecidos poderão ser exigidos somente das obras futuras.

Para os membros do mercado imobiliário, parece haver consenso sobre a existência de insegurança jurídica nos negócios. Atualmente, quais são as principais fragilidades jurídicas dessas empresas?

A produção imobiliária envolve um ciclo de longo prazo, desde a aquisição do terreno, passando por aprovações e registros necessários, até a construção propriamente dita. Isso deixa as empresas expostas a mudanças de toda ordem, durante um longo período, como, por exemplo, alterações de leis, regulamentos e normas em geral, que interferem no planejamento anteriormente feito. Além disso, devido à liberdade de propositura de ações que vigora em nosso sistema, agravada pela impunidade dos aventureiros, as empresas ficam sujeitas a questionamentos de toda ordem, ou por vizinhos que não desejam a edificação próxima, ou por entidades e associações de bairro, ou por parte do Ministério Público, que questiona leis, aprovações e práticas. O pior é que tudo isso acaba desaguando num Judiciário abarrotado de processos, que demora para decidir as controvérsias, o que é extremamente prejudicial à atividade. É justa a reclamação de regras claras e, mais, que se mantenham durante a fase de produção da obra tal como eram na data da sua aprovação.

Fonte: Revista Construção e Mercado / PINI

Postado por: Eng. Rafael Burin Fávero

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